NEM PRECISO DIZER PARA OS MEUS LEITORES QUE MINHA VISÃO DA RELIGIÃO É MAIS CRÍTICA QUE DEVOCIONAL. MAS NÃO POSSO NEGAR QUE ALGUMAS AÇÕES RELIGIOSAS SÃO LOUVÁVEIS E QUE EXISTEM PESSOAS MUITO BEM INTENCIONADAS EM TODAS AS RELIGIÕES. UMA DESSAS INICIATIVAS LOUVÁVEIS É A CHAMADA CAMPANHA DA FRATERNIDADE A RESPEITO DA QUAL RECEBI UM INSTIGANTE TEXTO DO MEU PRIMO-IRMÃO, FABIANO CALDAS GOES, O QUAL TENHO O PRAZER DE PUBLICAR AQUI NO NOSSO ESPAÇO. ESPERO QUE GOSTEM !
Fabiano Caldas Goes
“Não é bom que o homem esteja sozinho”, pensou Deus, ao constatar que todas as regalias do Paraíso eram ínfimas perante o dissabor de uma vida solitária (Gn II, 18). Como atesta a música de Paulinho da Viola: “Solidão é lava que cobre tudo”. Por isto Deus nos indica outro caminho: a congregação. Sua vontade é que se estabeleça uma só casa para todos (oikoumene – ecumenismo = casa comum) e que nela habite “um só povo e um só rebanho” (Jo X, 16), dissipando-se as estranhezas que nos afastam. Afora isto, é necessário que o povo de Deus rivalize menos, pois as calamidades que afetam a vida humana requerem nosso empenho conjunto. Neste contexto, a Campanha da Fraternidade Ecumênica emerge como um movimento de suma relevância: ela nos convida a abolir entraves e volver nossa atenção para questões muito mais urgentes do que nossas concepções doutrinárias.
Economia significa literalmente lei da casa (oikos = casa e nomos = lei). A casa é o próprio planeta Terra e a lei são os dispositivos que buscam subvencionar a existência em seu seio. Há um bom tempo estes dispositivos se tornaram ineficazes, deixando a casa sob o temor da ruína. No entanto não podemos vê-la desabar e permanecer indiferentes, como se nós e ela não estivéssemos visceralmente imbricados. Adão (do hebraico Adamá = nascido da Terra) dá uma boa perspectiva de nossa vinculação com a casa. “Nascido da Terra” designa não apenas o nascimento individual de Adão, mas sim o surgimento de toda a humanidade: gestada no útero da Terra. Nossa ligação com ela (Gaya = Terra) é muito mais do que formal: é um vínculo de parentesco e em patamar filogenético – remete a nossa origem mais tenra. Porém, se por um lado podemos usar legitimamente o termo mãe-Terra, por outro devemos admitir que nos revelamos filhos pouco zelosos e péssimos guardiões da Criação.
Gaya já está em idade avançada (por volta de seis bilhões de anos) e todas as inconveniências do envelhecimento são perceptíveis em sua face, graças a um histórico de maus-tratos reiterados. Seus infortúnios provêm do descaso massivo e da ambição insana que inebria a muitos – dentre estes, numerosos cristãos –, inobstante a advertência de Cristo: “Cuidado! Guardai-vos de toda ganância; não é pelo fato de um homem ser rico que ele tem a vida garantida pelos seus bens” (Lc XII, 15). Embora sejam paulatinamente mais vigorosos os clamores da Terra (tsunamis, maremotos, terremotos, abalos sísmicos, enchentes, etc.), a marcha consumista-destrutiva prossegue irreprimível e, gradualmente, a espécie humana se transforma em uma raça ecocida – letal para todo organismo vivo.
Ladeado a tudo isto, difunde-se uma visão de progresso individualista e anti-humanitária, versada em transformar pessoas em criaturas acéfalas, propensas a compactuar com toda sorte de abominações que resulte em lucratividade. A cultura do dinheiro é apoteótica. Sob o jugo do sistema econômico ela se converte em um crucial mecanismo de difusão e preservação do status quo errático: inferioriza a importância dos seres humanos e prioriza o ideário financeiro. Ressalve-se que no ano de 2008, instituições bancárias receberam R$ 35 bilhões de países ricos, preocupados com a ameaça de falência que as perscrutava. Em contraposição, países pobres cooptaram apenas R$ 4 bilhões, no transcorrer de cinqüenta anos. Isto é, o sentimento caritativo para com os bancos foi nove vezes mais pujante.
Diante de tudo isto, urge mudanças substanciais. Durante a quaresma ecoa um especial chamado a conversão. Porém, hoje, este chamado não é feito somente pela Igreja: ele é oriundo também da ciência e não se restringe ao tempo da quaresma. Ao seu estilo, religiosos e cientistas pregam sobre a salvação e propõem mudanças de atitude. Etimologicamente, salvação e saúde possuem o mesmo significado: firmar mentalidades mais propícias à vida (salute). O primeiro passo consiste em revitalizar-se a dimensão samaritana perdida (ou nunca existente), isto é, temos que estender a mão aos que estão caídos à beira do caminho. As escrituras decretam: “Suportai-vos uns aos outros” (Cl III, 13). Com isto elas não solicitam mais tolerância de nossa parte, mas sim que sirvamos de suporte uns aos outros, de maneira que as vicissitudes não esmoreçam nossa trajetória existencial. Nos tombados pela vida reside Cristo, invocando nossos cuidados. Dom Helder Câmara disse que “é uma heresia não reconhecer Cristo na hóstia consagrada bem como é uma heresia não reconhecê-lo naqueles que padecem”.
Se encarnado de fato, o tema desta Campanha (Economia e Vida) nos arremessará a um ofício profético: dar a conhecer que Deus não se acumplicia com o esquema perverso que ocupa o trono da lei da casa. Há um livreto intitulado Manifesto Comunista, de autoria de Marx e Engels, onde o proletariado é instigado a se rebelar contra o despotismo da classe burguesa. Analogamente, a Palavra de Deus nos insta a uma batalha ferrenha contra a alienação tirânica que infesta este mundo, dizimando as maravilhas da Criação e relegando milhões de seres humanos a condição de insignificância. É nosso dever denunciar as estruturas injustas da sociedade e resistir à sedução estupefaciente que a cultura do consumo obsessivo, da destruição planetária e do egoísmo individualista consegue exercer sobre as pessoas. Unidos, resistiremos com muito mais veemência. Encerro, lembrando que a palavra diabo vem do latim diabolus e pode ser traduzida por divisor. A desagregação é uma moléstia “diabólica” que pulveriza nossas forças e faz nossos desígnios parecerem inalcançáveis.
Um comentário:
A MAIS PURA VERDADE! TEXTO MUITO BEM ESCRITO E INCISIVO! PARABÉNS PELO TEXTO,FABIANO! VEJO QUE A FAMÍLIA GOIS TEM ESTE MAL, ALIÁS, ESTE GRANDE BEM - O DOM DA ESCRITA.
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